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Então lá estou eu quando começa a escurecer parado com uma mão na cortina da janela olhando para a rua lá embaixo enquanto Ben Fagan vai caminhando até a esquina para pegar o ônibus, com as calças largas de veludo cotelê e a simples camisa azul da Goodwill, indo para casa curtir um banho de espuma e um famoso poema, na verdade sem nenhuma preocupação ou ao menos sem nenhuma preocupação relativa ao que me preocupa embora ele também carregue uma culpa angustiante eu acho e um remorso inconsolável porque o romance caça-níqueis do tempo não fez suas manhãs primordiais por sobre os pinheiros do Oregon acontecerem – Estou agarrado aos drapês da janela como o Fantasma da Ópera atrás da máscara, esperando que Billie volte para casa e relembrando como eu costumava ficar assim perto da janela na minha infância e olhar para as ruas escuras lá fora e pensar em como eu era ruim nesse desenvolvimento que todo mundo chamava de “minha vida” e de “vida deles” – Não é tanto por ser um bêbado que eu me sinto culpado mas porque outros que ocupam esse plano de “vida terrena” comigo não sentem culpa alguma – Juízes corruptos fazendo a barba e sorrindo de manhã rumo a indiferenças hediondas, generais respeitáveis ordenando por telefone que soldados marchem em direção à morte ou caiam mortos, trombadinhas acenando a cabeça em celas dizendo “Eu nunca machuquei ninguém”, “ao menos isso eu posso dizer, sim senhor”, mulheres que se julgam salvadoras dos homens simplesmente roubando a essência deles porque acham que é isso mesmo que seus pescoços de cisne merecem (embora para cada pescoço de cisne que você perde haja outros dez à espera, cada um deles prontos para ir para a cama por qualquer mixaria), na verdade homenzarrões enormes monstruosos só porque as camisas deles são limpas se achando no direito de controlar as vidas dos trabalhadores indo até o governador e dizendo “Comigo o dinheiro dos seus impostos vai ser muito bem investido”, “O senhor tem de perceber como eu sou eficiente e o quanto eu sou necessário, sem mim o que seria do senhor?” – Até o grande cartum de um homem voltado para o sol nascente com ombros fortes com um arado aos pés, o governador engravatado vai tirar proveito enquanto o sol nasce – ? – Me sinto culpado por fazer parte da raça humana – Bêbado sim e um dos maiores idiotas do mundo – Na verdade sequer um bêbado legítimo apenas um idiota – Mas eu fico lá parado com a mão na cortina esperando Billie, que está atrasada, Ah eu, eu lembro daquela coisa assustadora que Milarepa disse que é diferente das palavras de consolo dele que eu lembrei na cabana da minha doce solidão em Big Sur: “Quando as várias experiências vêm à luz durante a meditação, não fiqueis orgulhoso nem angustiado para contar aos outros, de outro modo vós aborrecereis as Deusas e as Mães” e aqui estou eu o perfeito escritor americano idiota fazendo exatamente isso não só para ganhar a vida (o que afinal de contas eu sempre fui capaz de fazer na ferrovia no navio e erguendo tábuas e sacos com as minhas humildes mãos) mas porque se eu não escrever o que eu vejo acontecer nesse globo infeliz arredondado pelos contornos da minha caveira eu acho que posso ter sido mandado à Terra pelo pobre Deus a troco de nada – Mas ser um Fantasma da Ópera por que isso me deixaria preocupado? – Na minha juventude apoiando a testa desesperançoso na barra da máquina de escrever, perguntando a mim mesmo porque Deus existia afinal? – Ou mordendo os lábios em penumbras marrons na cadeira da sala onde o meu pai morreu e nós todos morremos um milhão de mortes – Só Fagan entende e agora ele pegou o ônibus – E quando Billie volta para casa com Elliott eu abro um sorriso e me sento na cadeira e ela desaba embaixo de mim, blang, me estatelo surpreso no chão, a cadeira se foi.
“Como que isso foi acontecer?” Billie se pergunta e nós dois olhamos juntos para o aquário e os dois peixinhos dourados estão flutuando mortos de barriga para cima na superfície d’água.
Eu passei uma semana sentado naquela cadeira ao lado do aquário bebendo e fumando e conversando e agora os peixinhos estão mortos.
“O que será que matou eles?” – “Não sei” – “Será que foram os sucrilhos Kellogg’s que eu dei pra eles?” – “Pode ser, o certo é dar só comida de peixe” – “Mas eu achei que eles tavam com fome e aí eu dei uns farelinhos de sucrilhos” – “Bom eu não sei o que matou eles” – “Mas por que ninguém sabe? O que aconteceu? Por que essas coisas acontecem? Lontras e ratos e tudo morrendo por todos os lados Billie, eu não aguento mais, é sempre minha culpa o tempo inteiro!” – “Quem disse que era sua culpa querido?” – “Querido? Você tá me chamando de querido? Por que você tá me chamando de querido?” – “Ah deixa eu te amar” (me dando um beijo), “é só porque você não merece” – (Penitente): – “E por que eu não mereço?” – “Porque você diz que não...” – “Mas e os peixes” – “Eu não sei, é sério” – “Será que é porque passei a semana inteira sentado naquela cadeira bamba fumando na água deles? E todo mundo fumando e ainda por cima toda aquela conversa?” – Mas o garotinho Elliott sobe no colo da mãe e começa a fazer perguntas: “Billie”, ele chama ela, “Billie, Billie, Billie”, tocando o rosto da mãe, eu quase enlouqueço de tanta tristeza – “O que você fez hoje?” – “Saí com o Ben Fagan e dormi no parque... Billie o que que a gente vai fazer?” – “Qualquer hora dessas vamos fazer o que você disse, casar e pegar um avião pro México com o Perry e o Elliott” – “Eu tenho medo do Perry e do Elliott também” – “Ele é só um garotinho” – “Billie eu não quero me casar, eu tô com medo...” – “Medo?” – “Eu quero ir pra casa e morrer com o meu gato.” Eu poderia ser um elegante presidente magro de terno sentado em uma cadeira de balanço à moda antiga, mas não em vez disso eu sou apenas o Fantasma da Ópera parado ao lado de um drapê em meio a peixes mortos e cadeiras quebradas – Será mesmo que ninguém se importa com quem me fez ou por quê? – “Jack o que houve, do que você tá falando?” mas de repente enquanto ela está preparando o jantar e o pobrezinho do Elliott está lá esperando com a colher em riste no punho eu percebo que tudo é apenas uma cena familiar e eu é que não passo de um doido no lugar errado – E de fato Billie começa a dizer “Jack a gente devia estar casado e curtir uns jantares tranquilos assim com o Elliott, é uma coisa que ia santificar você pra sempre eu garanto”.
“O que que eu fiz de errado?” – “O que você fez de errado foi negar o seu amor a uma mulher como eu e às mulheres anteriores e às mulheres futuras como eu – imagina só a curtição que seria a gente estar casado, pôr o Elliott pra dormir, sair pra escutar um jazz ou até pegar aviões pra Paris de repente e todas as coisas que eu tenho pra te ensinar e que você tem pra me ensinar – em vez disso só o que você tá fazendo é desperdiçando a sua vida aí sentado triste pensando no que fazer e o tempo todo as coisas que você procura estão debaixo do seu nariz” – “Mas supondo que eu não queira...” – “Dizer que você não quer faz parte do jogo, na verdade você quer...” – “Mas eu não quero, eu sou um cara estranho bizarro que você nem devia conhecer” (“Bizau? O que que é bizau? Billie? O que que é bizau?” pergunta o pobre Elliott) – E enquanto isso Perry aparece por uns instantes e eu digo sem nenhum rodeio para ele “Perry eu não te entendo, eu te amo, te curto, você é demais, mas que história é essa de sequestrar garotinhas?” mas de repente enquanto eu estou fazendo a pergunta eu vejo lágrimas nos olhos dele e percebo que ele é apaixonado por Billie e sempre foi, uau – Eu até digo, “Você é apaixonado pela Billie, né? Desculpa, eu tô dando o fora daqui” – “Do que você tá falando?” – Aí começa uma puta explicação sobre ele e Billie serem só amigos e eu começo a cantar Just Friends igual ao Sinatra “Two friends but not like before” mas Perry com seu bom coração ao me ver cantar corre escada abaixo para me trazer outra garrafa – Mas ainda assim os peixes estão mortos e a cadeira quebrada.
Perry na verdade é um jovem trágico com grande potencial que simplesmente não faz nada para evitar que o arrastem até o inferno eu acho, a não ser que alguma coisa aconteça e logo, eu olho para ele e percebo que além de amar Billie em segredo e de verdade ele também deve amar o velho Cody tanto quanto eu amo e amar todo mundo ainda mais do que eu mas ele é o cara que acaba sempre atrás das grades por causa disso – Robusto, coberto de desgostos, ele fica lá sentado com o cabelo preto sempre caído na testa, por cima dos olhos pretos, os braços de ferro pendendo como os braços de um poderoso idiota no manicômio, com a beleza da perdição espalhada por toda a aparência – Quem é ele? No fundo? – E por que a loira Billie que está lavando os pratos da casa não reconhece o amor dele? – Na verdade eu e Perry acabamos os dois sentados com a cabeça pendente quando Billie volta para a sala e vê nós dois daquele jeito, como dois catatônicos arrependidos no inferno – Um negro aparece e diz que se eu der uns dólares para ele ele descola uma erva mas assim que eu dou cinco dólares ele diz de repente “Eu não vou conseguir nada” – “Você tem cinco dólares, é só ir atrás” – “Não sei se eu vou conseguir” – Não gosto nem um pouco dele – De repente eu vejo que posso pular em cima e derrubar ele no chão e tomar os cinco dólares de volta mas eu não estou nem aí para o dinheiro mas estou puto da cara por ele ter feito isso – “Quem é aquele cara?” – Eu sei que se eu inventar de brigar com ele ele vai puxar uma faca e arrebentar a sala de Billie também – Mas de repente aparece um outro negro que acaba sendo uma visita agradável falando sobre jazz e irmandade e eles vão todos embora e eu e Jacky ficamos sozinhos para pensar um pouco mais na vida.
Toda a cola muscular do sexo é um saco, mas eu e Billie curtimos uma farra sexual tão fantástica que afinal é por isso que a gente consegue filosofar daquele jeito e concordar e rir junto em nossa doce nudez “Ah querido junto a gente é louco, a gente podia morar numa cabana de troncos nas montanhas sem dizer nada por anos, estava escrito que a gente tinha que se conhecer” – Ela diz todo tipo de coisa enquanto uma ideia me ocorre: “Já sei, Billie, que tal a gente sair da Cidade e levar o Elliott com a gente pra cabana do Monsanto no meio do bosque por uma ou duas semanas e esquecer de todo o resto” – “Sim eu posso ligar para o meu chefe e tirar umas semanas de folga, Ah Jack vamos” – “E vai ser bom pro Elliott, se afastar desses teus amigos sinistros, pelo amor de Deus” – “O Perry não é sinistro.”
“A gente se casa e vai embora morar nas Montanhas Adirondack, de noite à luz do lampião a gente vai curtir uma jantinha simples com o Elliott” – “Eu sempre vou fazer amor contigo” – “Mas você nem vai precisar porque nós dois vamos ver que somos insetos... nossa casa vai ter verdade escrita em toda a parte mas mesmo que o mundo inteiro venha manchar tudo com as tintas pretas do ódio a gente vai estar caindo de bêbado com a verdade!” – “Toma um pouco de café” – “Minhas mãos vão ficar dormentes e eu não vou poder usar o machado mas ainda assim eu vou ser um homem verdadeiro... À noite eu vou ficar perto do drapê da janela escutando os balbucios do mundo inteiro e depois vou te contar” – “Mas Jack eu te amo e não é só por isso, você não vê que a gente foi feito um pro outro desde o início, você não vê que quando você veio com o Cody e começou a me chamar de Julien por aquele motivo besta que você me contou onde eu pareço com um velho amigo seu em Nova York” – “Que odeia o Cody do fundo do coração e o Cody odeia ele” – “Mas você não vê que isso é um desperdício?” – “Mas e o Cody? Você quer que a gente case mas você ama o Cody e na verdade o Perry também te ama” – “Tá mas e qual é o problema com isso ou com tudo isso? Existe um amor perfeito entre nós dois pra sempre não há dúvida mas nós só temos dois corpos” – (uma frase estranha) – Fico ao lado da janela olhando para a noite cintilante de São Francisco com suas casas mágicas de papelão dizendo “E você ainda tem o Elliott que não gosta de mim e eu não gosto dele e na verdade eu não gosto de você e nem de mim mesmo, que tal?” (Billie não responde nada mas só guarda a raiva que extravasa mais adiante) – “Mas a gente pode ligar pro Dave Wain e ele nos leva até a cabana em Big Sur e pelo menos a gente fica sozinho no bosque” – “Eu já falei que é isso que eu quero fazer!” – “Então liga de uma vez pra ele!” – Eu digo o número e ela liga igual a uma secretária – “Ah a triste música da vida, já fiz tudo, vi tudo, fiz tudo com todo mundo” eu digo com o telefone na mão, “o mundo inteiro tá parecendo um ginasista do segundo ano ávido por aprender o que ele chama de Coisas novas, presta atenção, a mesma música velha triste repetitiva da morte... porque a razão que eu grito toda essa morte é porque na verdade eu tô gritando a vida, porque você não pode ter morte sem vida, alô Dave? Você tá aí? Sabe por que que eu tô ligando? Escuta só... pega aquela morenaça romena louca Romana e põe ela no Willie e vem até aqui o apê da Billie pegar a gente, nós vamos fazer as malas enquanto vocês estão vindo, o mel tá correndo, vamos todos passar duas semanas de pura alegria na cabana do Monsanto” – “E ele tá sabendo?” – “Eu vou ligar agora mesmo e perguntar, claro que ele deixa” – “Hmm eu achei que eu ia pintar o muro da Romana amanhã mas talvez eu acabasse na manguaça de qualquer jeito: tem certeza que você quer fazer isso agora?” – “Só, vamos lá” – “E eu posso levar a Romana?” – “Claro, por que não poderia?” – “E pra que isso tudo?” – “Ah meu velho, talvez só pra te ver de novo e a gente poder falar sobre os nossos objetivos: você quer dar um ciclo de palestras na universidade de Utah e na universidade de Brown e falar pras crianças engomadinhas?” – “Engomadinhas com o quê?” – “Engomadinhas com a perfeição desesperançosa da esperança pioneira puritana que não deixa sobrar nada além de pombos mortos pra gente ver?” – “Tá legal eu já tô saindo... mas primeiro vou encher o tanque do velho Willie e trocar o óleo também” – “Eu te pago quando vocês chegarem” – “Ouvi dizer que você e a Billie tavam fugindo pra se casar” – “Quem foi que te disse?” – “Tava no jornal de hoje” – “Bom vamos entrar mais uma vez no velho Willie mas não traz o Ron Blake, vamos estar só os dois casais, beleza?” – “Só – e escuta eu vou levar a minha vara de pescar e pegar uns peixes para a gente” – “Vai ser uma curtição – e escuta Dave eu tô muito grato por você estar livre e ter topado nos levar até lá, eu tô no fundo do poço, passei uma semana aqui bebendo e a cadeira quebrou e os peixes morreram e eu tô todo fodido outra vez” – “Ah você não devia tomar bebidas doces o tempo inteiro e você também não come nunca” – “Mas o problema não é esse” – “Bom a gente vai descobrir qual é o problema” – “É isso aí” – “Eu acho que o problema são aqueles pombos” – “Por quê?” – “Sei lá, lembra quando a gente tava em East St. Louis com o George, e Jack você disse que amaria aquelas dançarinas lindas se você soubesse que elas iam viver lindas para sempre?” – “Mas isso é só uma citação do Buda” – “Eu sei, mas as garotas não esperavam uma coisa daquelas” – “Como é que você tá Dave? O que o Fagan tá aprontando essa noite” – “Ah ele tá sentado no quarto escrevendo alguma parada, diz que é o LIVRO DA PIRAÇÃO, cheio de desenhos malucos, e o Lex Pascal tá bêbado outra vez e a música tá tocando e eu tô triste pra cacete e feliz que você ligou” – “Você gosta de mim Dave?” – “Eu não tenho mais o que fazer, garoto” – “Mas sério você tem outra coisa para fazer né?” – “Escuta não esquenta, eu já apareço aí, liga pro Monsanto agora porque a gente ainda tem que pegar as chaves do portão do curral com ele” – “Eu fico muito feliz de ter um amigo que nem você, Dave” – “Eu também, Jack” – “Por quê?” – “Talvez eu quisesse plantar bananeira na neve para mostrar pra você mas é sério, eu tô feliz, vou continuar feliz, afinal é isso mesmo a gente não tem mais nada o que fazer além de resolver esses malditos problemas e eu tô agora mesmo com um problemão aqui dentro das calças pra Romana resolver” – “Mas é uma ideia tão doentia e batida enxergar a vida como um problema a ser resolvido” – “Sim mas eu só tô repetindo o que eu li nos manuais do pombo morto” – “Dave eu te amo” – “Beleza daqui a pouco eu apareço aí”.