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Porque no quarto dia eu comecei a ficar de saco cheio e anotei surpreso no meu diário “Já de saco cheio?” – Mesmo que as belas palavras de Emerson conseguissem afastar esse sentimento quando ele diz (num daqueles livrinhos encadernados em couro vermelho, no ensaio sobre “Autoconfiança” um homem “sente-se aliviado e alegre quando pôs o coração no trabalho e fez o melhor que podia”) (o que se aplica tanto à construção de pequenas regueiras bobas quanto à escrita de grandes histórias cretinas como essa) – Palavras daquela trombeta matinal da América, Emerson, ele que anunciou Whitman e também disse “A infância não se dobra a ninguém” – A infância da simplicidade de apenas ser feliz num bosque, sem se dobrar às ideias de ninguém sobre o que fazer, o que deve ser feito – “A vida não é uma apologia” – E quando um abolicionista filantrópico maldoso acusou ele de ser cego aos assuntos da escravidão ele disse “O teu amor ao longe é desprezo em casa” (talvez o filantropo usasse negros afinal de contas) – Então eu volto a ser Ti Jean o Garotinho, brincando, costurando remendos, cozinhando jantares, lavando pratos (sempre deixava a chaleira fervendo no fogo e quando tenho que lavar os pratos eu só derramo água quente na panela com sabão Tide e enxáguo eles bem e então seco depois de esfregar com umas palhas de aço 5-&-10) – Longas noites simplesmente pensando sobre a utilidade daquela pequena palha de aço, daquelas coisinhas amarelas de cobre que você compra no supermercado por 10 centavos, para mim tudo é infinitamente mais interessante do que o estúpido e absurdo romance O lobo da estepe na cabana que eu leio com um encolher de ombros, esse velho caquético refletindo a “conformidade” de hoje e o tempo todo ele achava que era um grande Nietzsche, um velho imitador de Dostoiévski 50 anos atrasado (ele se sente atormentado em um “inferno particular” porque não gosta do que as outras pessoas gostam!) – Melhor ficar olhando o laranja e o preto de Princeton nas asas de uma borboleta ao meio-dia – Melhor sair para escutar os sons do mar à noite na orla. Mas talvez eu não devesse ter saído e me assustado ou me aborrecido ou trabalhado até não aguentar mais tantas vezes naquela praia à noite que assustaria qualquer mortal comum – Todas as noites pelas oito horas depois do jantar eu vestia o meu casacão de pescador e pegava o caderno, o lápis e o lampião e começava a descer a trilha (cruzando às vezes com o fantasmagórico Alf no caminho) e ia para baixo daquela terrível ponte nas alturas e via através da neblina escura à minha frente as bocas brancas do oceano vindo na minha direção – Mas conhecendo o terreno onde eu iria pisar, pular o córrego da praia e ir até o meu canto junto ao penhasco não muito longe de uma das cavernas e sentar lá feito um idiota escrevendo o som das ondas na página do meu caderno (caderno de secretária) que eu conseguia ver brancas na escuridão e sem o auxílio do lampião continuar rabiscando – Eu tinha receio de acender o lampião por medo de assustar as pessoas no alto da escarpa comendo seus ternos jantares noturnos – (mais tarde eu descobri que não tinha ninguém lá em cima comendo jantares ternos, eram todos carpinteiros fazendo hora extra para terminar a obra) – E eu ficava com medo da maré alta com ondas de cinco metros mas sentado lá no alto do penhasco esperando de todo o coração que o Havaí não tivesse mandado nenhuma onda de maremoto que me passasse despercebida na escuridão vinda de lugares longínquos alta como Groomus – Mas uma noite eu fiquei assustado então me sentei no alto de um rochedo de 3 metros no pé da escarpa e as ondas “Cru, ele cruzou o portão cru” – “Rude ruuuge” – “Crach” – o jeito que as onda soam especialmente à noite – O mar não fala em frases mas em linhas curtas: “Qual deles? ...o plochado? ...o mesmo, ah Bum...” Anotando de verdade essas inanidades fantásticas mas eu precisava fazer aquilo porque James Joyce não ia mais fazer ele tinha morrido (e pensando “Ano que vem vou escrever os sons diferentes do Atlântico rebentando digamos nas costas noturnas da Cornualha, ou o som macio do Oceano Índico quebrando na foz do Ganges quem sabe”) – E fico lá sentado escutando as ondas quebrarem em diferentes tons de voz “Ka blum, carploch, ah lontra cordosa coberta de cracas, croch, são corda os anjos pelo mar?” e tal[2] – Olhando para cima de vez em quando para ver uns poucos carros atravessando a ponte alta e pensando no que eles veriam nessa triste noite enevoada se soubessem que havia um louco trezentos metros abaixo naquela fúria ventosa sentado no escuro escrevendo no escuro – Uma espécie de beatnik marinho, mas se alguém quiser me chamar de beatnik por ISSO é melhor pensar duas vezes – A enorme rocha escura parece se mover – A terrível solidão inóspita, nenhum homem comum seria capaz é o que eu estou dizendo – Eu sou um bretão! Eu grito e a escuridão responde “Les poissons de la mer parlent Breton” (os peixes do mar falam bretão) – Mesmo assim eu vou lá todas as noites mesmo quando não estou a fim, é o meu dever (e provavelmente a causa da minha loucura), e escrevo os sons do mar, e todo o poema insano “Mar”.

Sempre tão maravilhoso na verdade sair daquilo e voltar para o bosque mais humano e chegar à cabana onde o fogo ainda está aceso e você pode ver o lampião do Bodhisattva, o copo com as samambaias na mesa, a caixa de chá de jasmim por perto, tudo tão delicado e humano após o dilúvio de rocha lá fora – Então eu faço uma deliciosa panelada de muffins e digo para mim mesmo “Abençoado é o homem que pode fazer seu próprio pão” – Assim, as três semanas inteiras, felicidade – E eu também enrolo meus próprios cigarros – E como eu digo às vezes eu medito sobre o uso incrível maravilhoso que eu fiz de pequenos artigos baratos como a palha de aço, mas dessa vez estou pensando nos maravilhosos pertences na minha mochila como o meu shaker de plástico de 25 centavos que acabei de usar para fazer a massa do muffin mas também usei ele no passado para tomar chá quente, vinho, café, uísque e até guardei guardanapos nele quando viajei – A tampa do shaker, meu cálice sagrado, e tenho ele já faz cinco anos – E outros pertences tão valiosos comparados à inutilidade de coisas caras que comprei e nunca usei – Como a minha blusa de dormir preta macia também cinco anos que eu estava usando agora no verão úmido de Sur dia e noite, por cima de uma camisa de flanela no frio, e só a blusa para a noite de sono no saco – O uso e a virtude intermináveis dela! – E porque as coisas caras tiveram pouco uso, como as calças chiques que eu comprei para umas gravações recentes em Nova York e outras aparições na tevê e nunca mais vesti, coisas inúteis como uma capa de chuva de $40 que eu nunca usei porque ela sequer tinha aberturas nos bolsos laterais (você paga pela etiqueta e pela suposta “exclusividade”) – Também uma jaqueta cara de tweed comprada para a tevê que nunca mais usei – Duas camisas polo idiotas compradas para Hollywood que eu nunca mais usei e foram 9 mangos cada! – E quase choro ao me dar conta e lembrar da velha camiseta verde que eu achei, preste atenção, oito anos atrás, no LIXO em Watsonville Califórnia preste atenção, que me proporcionou um uso e um conforto incríveis – Como trabalhar para fazer aquele novo fluxo no córrego passar pela nova regueira funda conveniente próxima à plataforma de madeira na margem, e me perdendo naquilo como um garoto entretido com uma brincadeira, é como as pequenas coisas que contam (clichês são truísmos e todos os truísmos são verdadeiros) – No meu leito de morte eu poderia me lembrar daquele dia no córrego e esquecer do dia em que a MGM comprou o meu livro, ou poderia estar lembrando da velha camiseta verde perdida do lixo e esquecendo dos roupões com safira – Talvez o melhor jeito de ir para o Céu. Volto até a praia durante o dia para escrever o meu “Mar”, fico de pés descalços perto d’água parando para coçar um tornozelo com o dedão do outro pé, escuto o ritmo daquelas ondas, e de repente elas dizem “Virgem cê quer me sondar” – Volto para fazer um bule de chá.

Tarde de verão –

Mastigo impaciente

A folha de jasmim

Ao meio-dia o sol enfim sempre aparece, forte, batendo na varanda alta onde estou sentado com livros e café e à tarde eu pensei nos antigos índios que devem ter habitado esse cânion por milhares de anos, em como no século X esse vale devia ter o mesmo aspecto, só com árvores diferentes: esses índios antigos simplesmente os ancestrais dos índios mais recentes digamos de 1860 – Como todos morreram e em silêncio enterraram seus ressentimentos e expectativas – Como o córrego podia ser alguns centímetros mais fundo já que a atividade madeireira dos últimos 60 anos prejudicou um pouco as vertentes – Como as mulheres pilavam as bolotas, bolotas ou bolopts, até que enfim achei as nozes naturais do vale e elas tinham um gosto doce – E os homens caçavam veados – Na verdade só Deus sabe o que eles faziam porque eu não estava aqui – Mas o mesmo vale, mil anos de pó mais ou menos por cima das pegadas deles de 960 d.C. – E até onde eu vejo o mundo é velho demais para que possamos falar sobre ele com as nossas palavras tão novas – Vamos passar tão quietos pela vida (passando, passando) como o povo do século X aqui nesse vale só que com um pouco mais de barulho e algumas pontes e barragens e bombas que sequer vão durar um milhão de anos – Sendo que o mundo é apenas o que é, se movendo e passando, na verdade tudo bem a longo prazo e nada do que reclamar – Até as rochas do vale tinham ancestrais rochosos, um bilhão de bilhões de anos atrás, não deixaram nenhum uivo de queixume – Nem as abelhas, ou os primeiros ouriços do mar, ou a amêijoa, ou a pata cortada – Tudo a visão É-A-Vida do mundo, bem diante do meu nariz enquanto eu olho, – E olhando para aquele vale na verdade eu percebo que tenho que preparar o almoço e não vai ser diferente do almoço daqueles homens antigos e ainda por cima gostoso – Tudo é a mesma coisa, a neblina diz “Nós somos neblina e voamos nos dissolvendo como coisas efêmeras”, e as folhas dizem “Nós somos folhas e tremelicamos ao vento, nada mais, chegamos e partimos, crescemos e caímos” – Até os sacos de papel no lixo dizem “Nós somos sacos de papel feitos de polpa de madeira pelos homens, temos um certo orgulho de ser sacos enquanto isso for possível, mas depois voltaremos a ser polpa de madeira com nossas irmãs folhas quando chegar a época das chuvas” – Os tocos de árvore dizem “Nós somos tocos de árvores arrancadas do solo pelos homens, às vezes pelo vento, temos grandes tendões cheios de terra que bebem do solo” – Os homens dizem “Nós somos homens, arrancamos árvores, fazemos sacos de papel, achamos que temos boas ideias, fazemos o almoço, olhamos em volta, fazemos um grande esforço para perceber que tudo é a mesma coisa” – Enquanto a areia diz “Nós somos areia, nós já sabemos”, e o mar diz “Nós sempre vamos e voltamos, caímos e ploch” – O grande azul vazio do céu diz “Tudo isso volta para mim, então parte outra vez, e volta outra vez, então parte outra vez, e eu não estou nem aí, de um jeito ou de outro tudo me pertence” – O céu azul acrescenta “Não me chame de eternidade, me chame de Deus se você quiser, todos vocês tagarelas estão no paraíso: a folha é o paraíso, o toco de árvore é o paraíso, o saco de papel é o paraíso, o homem é o paraíso, a areia é o paraíso, o mar é o paraíso, o homem é o paraíso, a neblina é o paraíso” – Você consegue imaginar que um homem com insights maravilhosos como esses pode enlouquecer em um mês? (porque você tem que admitir que os sacos de papel e as areias falantes estavam dizendo a verdade) – Mas eu lembro de ver uma massa de folhas de repente se agitar com o vento, depois flutuar depressa pelo córrego em direção ao mar, fazendo com que eu sentisse um horror inefável na mesma hora “Ah meu Deus, estamos todos sendo arrastados pro mar não importa o que a gente diga ou faça” – E um pássaro que estava num galho torto some de repente sem eu escutar nada.